
"Há um homem diferente no pátio. Vê-se que ele ama Jesus mais do que a si mesmo. Não posso precisar a que ponto ele se ama, mas é mais. Isso está bem claro. Chama-se Judas, o Iscariote. O amor desse homem é diferente do meu amor: é um amor de mandíbulas cerradas, de olhar oblíquo, de desespero escuro. Todas as vezes que o vejo, penso: não seria mais sensato se Jesus o afastasse de vez? Ao mesmo tempo em que penso assim, penso também: não seria justo afastar o único homem que ama dum jeito de homem, o único homem que talvez na minha ausência possa defender o Mestre, derrubar tudo e atacar feito um homem. Por favor, é preciso que me compreendam: esse amor de Judas, o Iscariote, não é um amor ideal porque é ciumento e agressivo -não que ele tenha feito alguma violência, não, não fez nada-, mas o olhar que lança ao redor e sobretudo a mim é um olhar que diz: o meu amor é mais forte, é mais sangue, vocês não O possuirão. Ele conta comigo. Eu, Lázaro, digo a vocês que tenho piedade dele. Sei que ele não sabe expressar o seu amor de um outro jeito e por isso não seria correto ofendê-lo, ofendê-lo seria como se você desse um pontapé no teu cão, só porque ele te arranha os joelhos quando você chega, compreende? O teu cão não sabe fazer de outro modo, não é um cão amestrado. Judas o Iscariote, é, talvez, alguém que arranha não os joelhos, não, mas o peito de Jesus. Há uma outra coisa difícil de dizer. Digo que é uma outra coisa difícil porque tudo o que estou
dizendo aqui é difícil de dizer. Nem sei como eu consegui chegar a esse ponto, mas essa
outra coisa eu também vou dizer: eu acho que o amor do Iscariote tem que ser assim como é.
É inevitável que seja como é. Agora me veio uma ternura enorme por esse homem, uma vontade
de abraçá-lo: eu te amo, e não sei se você compreende, Judas, o que significa quando uma pessoa como eu diz que te ama. Não que eu seja totalmente diferente de você, eu também sou
você, apenas... apenas... oh, Senhor, as palavras são uma coisa enorme à nossa frente, o
exprimir-se é uma coisa enorme à nossa frente, eu sou, apesar de te amar, Judas, eu sou uma
coisa enorme à tua frente, me crês? Agora vou tentar dizer: Judas, eu também sou você.
Apenas... apenas... eu me recuso a ser totalmente você."
HILST, Hilda. Lázaro. In: HILST, Hilda. Fluxo-floema. São Paulo: Globo, 2003. p.127-129.
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