
"(...) Tudo quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pensamos ou sentimos, traz a mesma máscara e o mesmo dominó. Por mais que dispamos o que vestimos, nunca chegamos à nudez, pois a nudez é um fenômeno da alma e não de tirar fato. Assim, vestidos de corpo e alma, com os nossos múltiplos trajes tão pegados a nós como as penas das aves, vivemos felizes ou infelizes, ou nem... até sabermos o que somos, o breve espaço que nos dão os deuses para os divertirmos, como crianças que brincam a jogos sérios.
Um ou outro de nós, liberto ou maldito, vê de repente- mas até esse raras vezes vê- que tudo quanto somos é o que não somos, que nos enganamos no que está certo e não temos razão no que concluímos justo. E esse, que, num breve momento, vê o universo despido, cria uma filosofia, ou sonha uma religião; e a filosofia espalha-se e a religião propaga-se, e os que crêem na filosofia passam a usá-la como veste que não vêem, e os que crêem na religião passam a pô-la como máscara de que se esquecem .
E sempre, desconhecendo-nos a nós e aos outros, e por isso entendendo-nos alegremente, passamos nas volutas da dança ou nas conversas do descanso, humanos, fúteis, a sério, ao som da grande orquestra dos astros, sob olhares desdenhosos e alheios dos organizadores do espetáculo..."
Bernardo Soares - Pessoa, livro do desassossego, 255.
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