13.11.09

No meio da travessia

" ... Eu conto; o senhor me ponha ponto. Será que tem um ponto certo, dele a gente não podendo mais voltar para trás? Travessia de minha vida. A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele adentro. Calado é melhor que fique. Peço não ter resposta: que, senão, minha confusão aumenta. Por ora mal me entende, se é que no fim me entenderá. Mas a vida não é entendível. Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe... Dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra. Caçar verdadeiro no falso. Mas o que eu acho é que o senhor já sabe mesmo tudo – que tudo lhe fiei. Aqui eu podia pôr ponto. Para tirar o final, para conhecer o resto que falta, o que lhe basta... é pôr atenção no que contei, remexer vivo o que vim dizendo. Porque não narrei nada à-toa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. O senhor pense, o senhor ache. O senhor ponha enredo. Me ensina o que eu sabia.

O que era isso, que a desordem da vida podia sempre mais do que a gente? O real roda e põe diante. Homem, sei? A vida é muito discordada. Tem partes, tem artes. A gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Requeria era sarar, não desejava Céu nenhum. As pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – no que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Eu quase que nada não sei, mas desconfio de muita coisa. Atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Sertão é onde os pastos carecem de fechos. Quero o outro perto, eu distante de mim. Hoje em dia eu nem sei o que sei, e, o que soubesse, deixei de saber o que sabia. A gente só sabe bem aquilo que não entende. Meu coração é que entende, ajuda minha idéia a requerer e traçar.

Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. Sentei em cima de nada. E eu cri tão certo, depressa, que foi como sempre eu tivesse sabido aquilo. Se o senhor já viu disso, sabe; se não sabe, como vai saber? São coisas que não cabem em fazer idéia. Sertão é o sozinho... dentro da gente. O senhor sabe o mais que é, de se navegar sertão num rumo sem termo, amanhecendo cada manhã num pouso diferente, sem juízo de raiz? Não se tem onde se acostumar os olhos, toda firmeza se dissolve. O sertão não tem janelas nem portas... ele está em toda a parte. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa. Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. O que eu não entendo hoje, naquele tempo eu não sabia. O sertão me produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente da boca... Atravessei meus fantasmas? O senhor crê minha narração? No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi. Sei de mim? Cumpro..."

Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas

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