28.10.08

Morte do autor, morte da verdade?


(...) Todo o texto escrito é eternamente aqui e agora. Cessa-se de pensar o autor como o passado de sua obra, como o pai da obra, aquele que a nutre. O escritor nasce, ao contrário, junto com seu texto, e acaba com ele. “(...) A mão destacada de qualquer voz, levada por um puro gesto de inscrição, traça um campo sem origem(...)“. Ou ainda : “ A enunciação não tem outro conteúdo que não seja o ato pela qual ela se profere”. É assim que podemos compreender quando Borges nos fala que Cervantes teria escrito Quixote por acaso, como uma obra espontânea.: “O Quixote é um livro contingente, inecessário. Posso premeditar sua escritura, posso escrevê-lo, sem incorrer numa tautologia”.

A figura do leitor-autor

A escritura ultrapassa seu escritor, esse sempre retoma seu texto como leitor, e assim, sempre como outro. A palavra depois de dita é capaz de dizer pensamentos que o autor mesmo ignorava. É sempre nas diversas leituras do texto que o mesmo vai se constituir. De modo que passa-se a considerar com maior atenção o papel que agora se destaca ao leitor.

O filósofo Merleau-Ponty, nos ajuda a compreender o papel destacado ao leitor, nesta nova perspectiva. Contemporâneo a Barthes, ao falar da noção de obra de arte, que - apesar de se diferenciar, em partes do último, pois além de usar o termo obra, utiliza sentido, que também sendo recusado pelo segundo carrega uma compreensão afim à deste: “(...) Um romance, um poema, um quadro são indivíduos quer dizer, seres em que não se distingue a expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por contato direto.” ( Fenomenologia da percepção pg. 209) Enfim só através deste contato direto, do leitor, que as inúmeras significações possíveis num texto podem vir à tona e mais, considera o texto como um nó de significações vivas, que podem ser sempre reinventadas e, também extraviadas.

Borges, endossando a supremacia da arte do leitor, nos aponta que o trabalho laborioso do seu leitor de Quixote, nos mostra a dificuldade para o mesmo em compreender e interpretar Quixote na contemporaneidade, o que é muito mais complexo do que escrevê-lo no século XVII: “Compor Quixote no início do século XVII era uma empresa razoável, necessária, quem sabe fatal; nos princípios do XX, é quase impossível.”. Essa composição é a tarefa do leitor, no seu contato direto com o texto: “Menard enriqueceu a técnica da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas”. Por todas essas considerações podemos concluir que neste contexto, a leitura não é mais vista como uma atitude passiva, o leitor-autor enquanto ativo. Como alguém que não meramente se deixa afetar pelo texto, mas que o afeta e, sem isso o texto é como que um papel em branco.

Quando lemos Quixote, podemos ver ali o estilo de Menard, assim como o narrador do texto de Borges, lembrou-se do mesmo numa passagem de Cervantes. As palavras lidas no texto poderiam ser ditas por Menard. E quem poderá dizer que não? Ou mesmo que Menard copiou, plagiou Cervantes? Quem veio antes? Perguntas como essas foram agora ( assim como o texto) esvaziadas de sentido. Como Merleau Ponty nos aponta na fenomenologia da percepção, todo o texto é lido, e assim experimentado como sempre já vivenciado, nunca chegamos a compreender o que de alguma maneira já não temos uma pré-compreensão, uma familiaridade, a linguagem já nos é sempre familiar, não há linguagem privada. Todas as palavras já foram dita. A fala uma vez falada, assim como o texto uma vez palavra, aparece para nós como patrimônio permanente e imemorial. Como aponta Borges: “ Todo homem deve ser capaz de todas as idéias (...)”. Ou melhor, todo homem, sendo sempre ser na linguagem, é capaz de todas as idéias, de todas as palavras.

Sobre o papel do leitor nos adverte Barthes; “ Alguém que ouve cada palavra em sua duplicidade, e ouve mais, a própria surdez dos personagens”; “(...) O leitor é o lugar mesmo onde as diversas escrituras que formam o texto se reúnem se inscrevem(...) a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino”. E quem é esse leitor, quem é este que foi ignorado por toda crítica literária até então? Não importa, investigar pessoalmente tal figura, buscar sua biografia, sua história, como se fez até então com os autores. É nessa contingência, nessa tragicidade, que se ergue a figura do leitor em contrapartida àquela cristalizada do autor. A escritura fica assim lançada na provisoriedade de uma figura que é, no momento que está diretamente em contato com o texto, do mesmo modo que o texto. O que poderíamos associar ao clássico e negado sentido para um texto, está vinculado as diversas interpretações e significações possíveis por parte do leitor, e estas significações nunca se fecham enquanto ‘O sentido último’. É por isso que o texto de Menard e de Cervantes são verbalmente idênticos, mas, o de Menard é infinitamente mais rico. Eles podem ser iguais aparentemente, em forma, e enquanto palavras, mas Menard, enquanto leitor se sobrepõe ao texto, o reinterpreta, o ressuscita, o reescreve.

3 comentários:

Anônimo disse...

Olha, é uma leitura bem difícil pra mim. Muitas referências que eu só já ouvi falar, de maneira bem distante. Gosto do assunto! Pensei algumas vezes a partir do texto, lembrei das leituras que fiz sobre a palavra falada e a palavra escrita, da relação entre o fugaz e aquilo que retém. Enfim, divagações livres e associações. Achei bom o seguinte: "A fala uma vez falada, assim como o texto uma vez palavra, aparece para nós como patrimônio permanente e imemorial."
Continue, com o tempo posso ir compreendendo e refinando os meus comentários. Valeu.

Anônimo disse...

Olha, é uma leitura bem difícil pra mim. Muitas referências que eu só já ouvi falar, de maneira bem distante. Gosto do assunto! Pensei algumas vezes a partir do texto, lembrei das leituras que fiz sobre a palavra falada e a palavra escrita, da relação entre o fugaz e aquilo que retém. Enfim, divagações livres e associações. Achei bom o seguinte: "A fala uma vez falada, assim como o texto uma vez palavra, aparece para nós como patrimônio permanente e imemorial."
Continue, com o tempo posso ir compreendendo e refinando os meus comentários. Valeu.
HOMOLUDDENS

betatron disse...

Sabe, é incrível como as coisas não são vistas em sua real dimensão
quando estamos próximos a elas.
Geralmente é preciso se afastar.
Ou mudar de esfera.

Só aqui na blogsfera percebo essa teórica da arte ou crítica literária na senhorita.

Se não podemos publicar em uma revista da área, façamo-o em nosso próprio blog não é mesmo?

Nada sei de Menard, mas como seu texto figuram Cervantes o míopoe e adorável Merleau-Ponty e meu querido Borges, muito me agradou.

Sempre me recordo, quando o assunto é Quixote, da época do teatro. Meu diretor tinha um projeto, infelizmente nunca realizado, de encenar Dom Quixote, fazendo uma ponte com Martin Fierro e Antônio Conselheiro.

Mais um livro escrito apenas no mundo dos sonhos.

Mundo, mundo, vasto mundo...

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