19.10.08


-" (...) E toda sua vida tinha sido a vida que sonhara..."


"- Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por elas... Não vi se alguma vez pousavam... Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali... Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas... Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas.

- Deixai-a falar... Não a interrompais... Ela conhece palavras que as sereias lhe ensinaram... Adormeço para a poder escutar... Dizei, minha irmã, dizei... Meu coração dói-me de não ter sido vós quando sonháveis à beira-mar...

- Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível... Breve ele ia tendo um país que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta...

- (...) Ao princípio ele criou as paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e as travessas, uma a uma, cinzelando-as na matéria da sua alma - uma a uma as ruas, bairro a bairro, até às muralhas dos cais de onde ele criou depois os portos... Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre elas das janelas... Passou a conhecer certa gente, como quem a reconhece apenas... Ia-lhes conhecendo as vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas paisagens e as vai vendo... Depois viajava, recordando, através do país que criara... E assim foi construindo o seu passado... Breve tinha uma outra vida anterior... Tinha já, nessa nova pátria, um lugar onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos onde embarcara... Ia tendo tido os companheiros da infância e depois os amigos e inimigos da sua idade viril... Tudo era diferente de como ele o tivera - nem o país, nem a gente, nem o seu passado próprio se pareciam com o que haviam sido... Exigis que eu continue?... Causa-me tanta pena falar disto!... Agora, porque vos falo disto, aprazia-me mais estar-vos falando de outros sonhos...
(...)
- Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o marinheiro cansou-se de sonhar... Quis então recordar a sua pátria verdadeira..., mas viu que não se lembrava de nada, que ela não existia para ele... Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de sonho; adolescência que recordasse, era aquela que se criara... Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara... E ele viu que não podia ser que outra vida tivesse existido... Se ele nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se lembrava... E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido... Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer(...)gritai-me, para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui ante vós e que há coisas que são apenas sonhos(...)"

Trecho do Marinheiro - Drama Estático de Fernando Pessoa





Um comentário:

Anônimo disse...

bom, muito bom!

Mundo, mundo, vasto mundo...

  • Hoje no Dolce Vídeo eu resgato uma verdadeira joia dos anos 80: o gibi da She-Ra número 1, lançado pela Editora Abril em 1988! 🌟 Essa raridade trouxe a p...
  • Os filmes dele antes dos filmes noirs eram filmes de guerra (Sombra do Passado / Nazi Agent / 1942, Uma Aventura em Paris / Reunion in France / 1946), comé...
  • Enter a hushed parallel world of Sex and Death... Strange shadows in empty rooms. A bleak mise-en-scene... DAS BILDNIS DER DORIANA GRAY/DIE MARQUISE DE...
  • Slot machines have come a long way since their humble beginnings in the late 19th century. What started as a mechanical device with three spinning reels ha...
  • *É com imenso prazer que publico aqui o belíssmo poema que o grande Acadêmico Arnaldo Niskier me presenteou no dia do meu aniversário, 6 de outubro:*...
  • *HÁ COISAS QUE ME ASSOMBRAM* Thiago Amud *nas portas do cu* - Thiago Amud, você é doido demais! Cantou no disco do Skyla...
  • Do material preparado para a *Modo 5*, poemas inéditos de alguns portugueses contemporâneos que lemos com prazer e admiração aqui no escritório. Pintur...
  • Madame Tutli-Putli Para ler vendo ou ouvindo Um rufo de britadeira no coração. A vida suspensa num fio invisível – “*La route chante, quand je m'en vai...
  • *“A mis fotografías las une el mensaje de proteger la nueva vida y lo que significan los bebés en nuestro futuro. Y eso nunca ha sido tan ...
  • Não sendo especialmente assíduo já sou no entanto da casa, passo à frente dos turistas, posso dizer que gozo desse estatuto territorial, se entro sozinho,...
  • Vagas lembranças de longos abraços invadem o ciclo estável da concentração Desejos distantes apontam no cimo cume nevrálgico da supra-razão Deslizo no limo...
  • *Photobooth: A Biography*, de Meags Fitzgerald *Pedro Moura* O encontro interdisciplinar entre a banda desenhada e a fotografia não é de forma alg...
  • See PostSecret videos, discover new PostSecret links, pre-order the new PostSecret book. Visit '*The World of PostSecret*'.
  • Hoje, pensando na MTv (que agoniza), lembrei do período em que bandas descobriram clipes como ferramenta de divulgação do trabalho. Alguns marcaram o [meu]...
  • [image: yog_poster.jpg] Click to super-size! [image: yog_turkishposter.jpg] Turkish poster [image: yogmonsterfromspace_belgi.jpg] Belgium Poster [image: y...
  • CINEMA 2010 Os melhores filmes vistos nos cinemas & centros culturais: *1. A tomada do poder por Luís XIV **** (Rossellini, 1966) *2. No quarto da Vanda...
  • o meu outro eu dança agora aqui.